Cultura do Cancelamento
O uso do verbo “cancelar” no contexto que hoje conhecemos como “cancelar alguém” teve a sua origem no filme “New Jack City” (1991) onde a personagem Nino Brown, interpretada por Wesley Snipes, quando põe fim à relação amorosa com a sua namorada diz: “Cancel that bitch. I’ll buy another one”. O termo “cancelar” foi sendo usado a partir daqui como citação ao filme, principalmente em plataformas como o Black Twitter. Aos poucos foi também ficando associado à “Callout Culture”. Em 2010, no Tumblr blog Your Fave is Problematic iniciou-se uma discussão sobre o comportamento problemático de algumas figuras públicas. A ideia era que pessoas em lugares de poder tinham de ser ‘called out’ (chamadas à atenção) pelo seu comportamento indevido. Aos poucos os termos callout e cancel foram ficando cada vez mais próximos na sua significação, evoluindo de uma simples exigência por accountability (responsabilidade) para um protesto em forma de ação… a de cancelar.
Cancelar é uma forma de nos posicionarmos moralmente e de sinalizarmos aos outros o nosso posicionamento.
A cultura do cancelamento hoje é uma forma de ativismo político, que permite uma redistribuição de agência. Hoje, quase toda a população do mundo tem acesso à internet, ao contrário de outros momentos da história em que era mais difícil as pessoas se organizarem e começarem revoluções. Cancel culture é a nova onda digital de protesto individualizado e uma forma de exigir mudança numa sociedade que ainda tem de garantir liberdade para todos. É importante sublinhar que a cultura do cancelamento não é igual em todo o lado. Cada país tem a sua história, o seu nível de tolerância, a sua política. Em cada contexto as coisas acontecem de forma diferente.
Como cancelamos?
Cancelamento físico: cancelamos quando, por exemplo, deixamos de consumir um produto. Ser vegetariano ou vegano seria o mesmo que dizer que cancelei a carne e o abuso dos animais. Outro exemplo, no que diz respeito a marcas: deixo de comprar roupa numa determinada loja porque descobri que o fabrico vem de exploração infantil.
Cancelamento digital:
Divide-se em duas grandes práticas. As práticas de cancelamento e os discursos sobre o cancelamento.
Práticas de cancelamento: ações contra cancel targets que podem incluir empresas, indivíduos, marcas.
Essas práticas incluem:
Posts nas redes sociais - as que usam o termo “cancelado” #youarecancelled ou posts que querem dizer o mesmo #Getout, #BTSisdead
Retirar apoio do target fazendo unfollow, ou não comprando mais objectos da marca que o target representa, ou não ver mais os filmes onde o target entra (produz, representa, etc)
De um ponto de vista institucional, estas práticas incluem cancelamento literal. Ou seja, canais de TV ou plataformas de streaming cancelarem os programas que têm targets neles, ou seja, celebridades que se portaram de forma indevida. Também acontece vice-versa. Celebridades que cancelam marcas patrocinadoras por não concordarem com os seus valores. Também aqui incluído está o acto de uma empresa despedir um funcionário por este não se comportar de acordo com os valores da empresa.
Discursos sobre o cancelamento: Comentário sobre Cancelamento e as suas consequências
Discursos de primeira ordem: acontecem na mesma plataforma onde o cancelamento originário aconteceu. Por exemplo: retweet de um post de cancelamento adicionando um comentário pessoal (quer estejam do lado do acusador ou do acusado)
Discursos de segunda ordem: acontecem fora dos espaços virtuais onde o cancelamento aconteceu. Exemplos são notícias de jornal, blogs. Podem ser positivos ou negativos. Estar a favor do cancelamento ou criticar esta cultura.
A Cultura do Cancelamento eleva a democracia porque permite que mais pessoas falem. Ela permite lembrar os que têm poder que para toda a ação há uma reação. Acabaram-se os dias em que as figuras públicas podiam fazer tudo o que quisessem.
Antes de se chamar Cancel Culture: taking a stand; speaking truth to power; saying it like it is; giving power to the people; making sure revolution would not be co-opted.
Não é o que fazemos que é diferente, é como o fazemos.
“A cultura do cancelamento é necessária quando uma organização, empresa, pessoa ou sistema que causa danos irreparáveis acredita que é demasiado grande e poderosa para cair” Activista J. Maze III
“It’s a direct call to get better, do better, and be better for communities that are often marginalized” - Preston Mitchum
Cyberbullying
(https://cyberbullying.org/)
A cultura do cancelamento não é Cyberbullying, assim como hate speech não é free speech.
A raiz do Cyberbullying é causar dano deliberado. A raiz da Cultura do Cancelamento é causar mudança transformativa. Algo mais do que só o ódio é exigido.
“willful and repeated harm inflicted through the use of computers, cell phones, and other electronic devices”
Willful: The behavior has to be deliberate, not accidental.
Repeated: Bullying reflects a pattern of behavior, not just one isolated incident.
Harm: The target must perceive that harm was inflicted.
Computers, cell phones, and other electronic devices: This, of course, is what differentiates cyberbullying from traditional bullying
Liberdade de expressão
Liberdade de expressão significa que o governo, a polícia, o sistema jurídico, não podem impedir, ou mesmo prender, alguém por dizer o que pensa. Na lei, qualquer cidadão pode exprimir a sua opinião e valores. No entanto, isso não invalida que os outros cidadãos que não pertencem a nenhuma entidade reguladora do crime, não possam julgar e condenar algumas das coisas que são ditas nessa liberdade de expressão. Durante muito tempo uma certa classe privilegiada esteve protegida pela lei, porque a lei não dava liberdade de expressão a todos. Então, esse grupo privilegiado não era confrontado com a sua homofobia, xenofobia, racismo e por aí adiante.. Diziam o que queriam e ninguém os chamava à atenção. Também porque as pessoas que lhes chamariam à atençao, muitas delas pertencentes a minorias, não tinham poder para dizer o que pensavam. Quando a lei se torna igual para todos, aqueles que vêm do lugar do privilégio nem sempre estão habituados a ser chamados à atenção pelos comentários insultuosos que proferem. E por isso, a maior parte deles hoje são contra a Cultura do Cancelamento. Os que frequentemente dizem: “The good old days”. Para eles, alguém criticar o que eles dizem é um atentado à democracia, uma censura. Vitimizam-se, ocupando o lugar das vítimas do seu discurso. A liberdade de expressão permite que haja mais discurso e permite que mais vozes sejam ouvidas.
Doxing
The action or process of searching for and publishing private or identifying information about a particular individual on the internet, typically with malicious intent.
Publishing an individual’s personal address, for example. Or giving out his phone number.
Attention economy
“There is no such thing as bad publicity” e “Falem bem ou falem mal, mas falem.” As celebridades que são canceladas geram tanto engajamento que acabam por conseguir voltar. E a maior parte delas tem dinheiro suficiente para se sustentar nessa ‘pausa’ ou até para financiar o seu próprio come back. (manipulando a mídia, fazendo doações e começar a estar associado a causas, etc).
Affect economy
Quanto mais tempo o usuário ficar engajado, mais lucro está a dar à plataforma e mais sumo está a dar ao algoritmo que lhe fornece o conteúdo de volta. Affective intensity favorece formas extremas de discurso político over discursos moderados. Favorece afirmações ultrajantemente falsas over factual content. Isto contribui para o aumento da polarização política.
Hate-watching
Assistir a algo, conteúdo de entretenimento, notícias, eventos sociais, etc, e criticar o que está a ser visto, em directo, numa plataforma de social media.
Normalmente através de postagens que se conectam em rede através do uso do mesmo hashtag (#)
Wokeness
Muitos comentários negativos da Cultura do Cancelamento associam-na ao “Wokeness”.
O movimento woke é algo que os críticos vêem como sendo empty performative politics. (performatividade política vazia, tradução livre)
Hacktivismo
Hackear websites de corporações para dar a conhecer verdades e críticas ao capitalismo.
Community-building
Habilidade de facilitar a comunicação e conexão across geographical distance com despesas financeiras muito menores,
comparativamente à imprensa printada, ao rádio e à TV.
Keyboard warriors
Lugar de fala
Essencialmente, refere-se a autoridade que uma pessoa possui para falar sobre a sua situação social enquanto pertencente a um grupo minoritário, seja étnico, de gênero, religioso, político etc. A ideia central no Lugar de Fala é entender que, mesmo que diferentes pessoas possam compreender situações sociais e teorizar sobre as mesmas, quem possui argumentos de autoridade sobre essas situações são os grupos que possuem experiências com essas realidades. O Lugar de fala costuma ser um lugar social de prática discursiva associada a experiências sociais específicas e, em geral, relacionadas a algum tipo de opressão ou de iniquidade social. Assim, é muito comum que a ideia de lugar de fala seja utilizada por minorias
Exercício de não ousar falar mais alto sobre aquilo que não nos diz respeito.
Djamila: (...) O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. Pensamos em lugar de fala como refutar a historiografia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social. (...) (...) Que legitimidade teria para dizer? (...) Se você quiser falar sobre assuntos relacionados a algum grupo ao qual você não pertence, considere primeiro se tem prioridade para isso e, segundo, qual o seu lugar nessa discussão, sob qual perspectiva foi construído seu olhar. Então, uma pergunta simples: o que estou acrescentando à discussão? Depois, pense se ocupa um lugar de privilégio em relação ao oprimido. Se sim, talvez seja melhor não falar nada. Por último, garanta que ao se posicionar você não está tentando falar por ninguém - todo mundo pode falar por si. Na dúvida, a regra de ouro: não fale sobre o que não lhe diz respeito.